Racismo no Cinema
Publicado: 28 Setembro, 2008 - 00h00
Escrito por: CUT BA
Racismo no cinema brasileiro atual
Passe racista do Linha de passe
Por Cuti (Luiz Silva)*
Chegamos ao cinema cedo. Tivemos tempo para aquele docinho que aps o almoo ningum rejeita. gua para rebater e refrescar a conscincia e aliviar seu peso. Bom lugar no centro da sala.
Enquanto aguardvamos, cometendo nosso delitozinho aucarado, comentamos um penteado em cabelo crespo de uma mulher que entrara e fora sentar mais frente. Era um penteado simples, porm realava o rosto feminino. Umas tranas presas frente e o restante do cabelo bem lua cheia, o que se chamou na dcada de 70 de black-power, que de power teve pouca durao, pois logo retornou a febre dos alisantes e surgiu essa mania de raspar que, no Brasil, teve incio com alguns jogadores de futebol complexados e se alastrou. O penteado da moa era mesmo uma obra de arte que fez minha parceira uma das muitas (ainda poucas) que ousa no alisar nem fritar seu cabelo , ficar com uma ponta de inveja, mas inveja saudvel, de quem admira de forma exagerada.
Depois, vi uma outra jovem tambm com o seu cabelo crespo natural e exuberante entrar altiva e sentar-se. Ambas belas e sozinhas!
Bem, o Linha de Passe dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas, elogiado no Festival de Cannes , comeou, aps as inmeras projees publicitrias que deveriam garantir cinema de graa para todo mundo. No faltou a do etanol, mostrando, sem sutileza, um macaco flanelinha. Dentro do carro, s brancos. Por falar em publicidade, lembro que, na Revista Veja, de 10/9/2008, p.36, uma propaganda do filme citava, dentre outras, a seguinte frase, atribuda Todd McCarthy, do peridico Variety: Magistralmente realizado em cada detalhe. Cito a frase, pois aparentemente de detalhe que vou discorrer e, em parte, discordar do magistralmente.
No filme, um personagem negro da famlia, ncleo da histria, chama ateno. a nica criana (Reginaldo) do grupo familiar e o desempenho do ator mirim (Kaque) espetacular. Filho de me branca (Cleuza) com atuao j premiada de Sandra Corveloni, em Cannes com pai negro ausente, o personagem vive com outros trs irmos, esses filhos de brancos ou mestios, pais tambm s presentes em foto, ao que se presume.
Racismo nas expresses neguinho pra l, neguinho pra c no falta nas bocas dos irmos e me, todos j adultos, e, portanto, quatro contra um (mais frgil por ser criana) nesse quesito da discriminao domstica. Nenhuma resposta. Passados alguns minutos do filme, o prprio Reginaldo diz, referindo-se ao pai que vive buscando: Se eu sou assim dessa cor, ele deve ser um carvo. Silncio da me. Risos na platia. O mesmo personagem menino, depois de a me ralhar com ele, dizendo: Credo, Reginaldo! Vai dar um jeito nesse cabelo. T parecendo um mendigo!, responde na mais singela baixa auto-estima: Cabelo de preto tem jeito? E a me retruca: Tem jeito sim senhor! O garoto resmunga, faz referncia gravidez da me e esta depois de dar uns tapas no filho, grita: Seu desgraado. Negrinho desaforado... A estratgia discriminatria a comum: induzir a que se conclua que quem faz o preconceito contra o negro o prprio negro. Afinal o menino que afirma perguntando. A me diz que tem jeito. E qual seria o jeito? Certamente alisar ou raspar. Quanto a usar negrinho como ofensa (j que est associado a desaforado), nenhum contraponto. como se o filme, pela naturalizao do racismo, entoasse o ttulo de um livro defensivo: No somos racistas.
Comentei a discriminao com minha parceira. Pensei nas moas que eu havia admirado, no s pela ousadia (veja a que ponto chegamos!) de usarem seus cabelos naturais, mas pela beleza dos penteados. Lamentei de elas estarem sozinhas, imaginando seus sentimentos ante os citados detalhes.
Faz tempo que Lamartine Babo e os Irmos Valena compuseram a msica O teu cabelo no nega (1931), uma ode ao racismo cordial tipo exportao. Walter Salles e Daniela Thomas atualizam-na com a mesma destreza dos intelectuais brasileiros adeptos do politicamente incorreto. Ofender os descendentes de escravizados deve dar a eles um gostinho sdico irresistvel, reacendendo a herana de inconfessveis rancores escravistas.
A fala relativa a cabelo lembra outra do mesmo diretor. No filme Central do Brasil, a personagem representada por Fernanda Montenegro, ao comentar uma carta-cantada que redigiu para um analfabeto, endereada a uma mulher, revela que o mesmo no tem cabelo liso como pediu para escrever. Faz tal revelao a algum expressando um gesto com os dedos tensos para dentro das mos e realiza uma careta. Ou seja, o cabelo crespo fica relacionado a aspectos grotescos.
Quanto cor da pele, outro diretor Fernando Meirelles no filme Cidade de Deus no deixou por menos. O bandido mais cruel, que o livro de Paulo Lins nem descreve como negro, no filme tem a pele bem escura e o bandido bonzinho mulato claro. Tambm a, na mesma pelcula, a personagem estuprada, que no livro loira, aparece no filme como negra. Coincidncia? No. Doena.
Lembremos ainda outra pelcula, Era uma vez..., filme do diretor Breno Silveira, baseado na pea Romeu e Julieta, de Shakespeare. Favelado e patricinha formam o par romntico. O favelado (Da) mestio. E o irmo de criao (Carlo), negro, grita em dois momentos que ele tem a bunda branca. Ou seja, um mestio quase branco. O rico arruinado, pai da patricinha, em nenhum momento refere-se cor do rapaz, mas sua condio econmica. De novo o No somos racistas da classe mdia. Carlo, por sua vez, xingado de macaco, vrias vezes, pelo marginal Caf Frio, tambm mestio. Inclusive, parceiros negros do mesmo bandido riem da referida ofensa racial. Apiam-na, portanto. Mais uma vez a conivncia do prprio negro com a sua discriminao.
Bem, eu e outros tantos negros que assistimos a filmes nacionais estamos carecas de saber (e no necessariamente raspados) que diretores brancos desopilam seu fgado nos traos que nos diferenciam deles. A pergunta : e o fazem por qu? Denncia? Tais manifestaes esto por demais denunciadas. Carecem, sim, de resposta. Quando a discriminao no tem resposta mera reproduo, cristalizao do preconceito. Tais manifestaes de racismo, no contexto em que se realizam no conseguem esconder o cancro coletivo sobre o qual todos fazem silncio: o complexo de superioridade racial. Isso mesmo: cancro, pois evoluiu e vai destruindo a mente humana, tendo em vista que redunda em agressividade e perda de controle sobre ela, fato que j vitimou milhes de pessoas. s lembrar da Segunda Guerra Mundial e do apartheid.
O riso usado como punio. Nos casos citados, pode-se entender que rir do cabelo natural e da cor do afro-descendente uma forma de punir aqueles que chegaram condio de ter recursos para assistir a filmes em um pas onde menos de 20% da populao consegue. Mas, um pouco mais que isso. Trata-se de afirmao da branquitude. Quando um diretor faz o pblico branco racista rir daquilo que natural no negro, ele est reforando o seu cancro psquico e o de muita gente. Est grunhindo que o cabelo liso melhor que o cabelo crespo, e que, portanto, o branco superior ao negro. A naturalizao do racismo , assim, a forma de retroalimentar o tumor, de mant-lo vivo e voraz.
So apenas detalhes de filmes, que se juntam a outros de outros filmes, a cenas de novela, a narrativas literrias, a matrias jornalsticas e, assim, vai sendo tecida a rede da crueldade que faz muitos negros e mestios-negros empenharem-se na aproximao do padro de beleza branco, com o afastamento das suas caractersticas naturais, alimentando um indstria de cosmticos de donos, em sua maioria, brancos. So lanados em um processo de autonegao constante. A baixa auto-estima apenas uma faceta de tantas outras, como no se sentir inteiramente apto a concorrer nessa arena do dia-a-dia.
Esses detalhes e, sobretudo, o que est por trs deles justificam que se promova um cinema negro-brasileiro como o vm realizando diretores como Joelzito Arajo, Antnio Pitanga, Zzimo Bulbul, Celso Prudente, Jeferson De, Noel Carvalho, Ari Cndido, Daniel Santiago, Rogrio de Moura dentre outros, pois, a todo momento, onde menos se espera, a ponta da patologia social do branco brasileiro, como diria o socilogo Guerreiro Ramos, aparece. E os racistas riem para punir os negros que, saudavelmente, no conhecem seu lugar e que por isso mesmo no cometem haraquiri esttico, por mais indolor que ele aparente ser.
*Cuti
Luiz Silva doutor em Literatura Brasileira e escritor. Autor de Negroesia, dentre outros.
escritorcuti@terra.com.br
www.luizcuti.silva.nom.br