As travessias de um médico baiano cotista que trilha carreira na Espanha
Aos dezesseis anos da aprovação das ações afirmativas na UFBA, o médico Vidal relata sua trajetória.
Publicado: 17 Maio, 2020 - 23h55 | Última modificação: 18 Maio, 2020 - 11h26
Escrito por: Ana Paula Ramos

Há um ano vivendo na Europa, o médico Ícaro Luís Vidal, 32, jovem preto de família humilde, cresceu na Liberdade, um dos bairros mais populosos de Salvador. Manter os pés no chão e ser extremamente disciplinado nos estudos fez toda diferença em sua escalada para o sucesso.
A vida de secundarista seguia uma rotina repleta de atividades educacionais curriculares regulares e extracurriculares. Seus pais não tiveram a oportunidade de seguir além do segundo grau, por isso, priorizaram a educação dos filhos.

Vidal ressalta que sempre teve consciente do seu recorte transversal dentro da sociedade. A escolha pela Medicina aconteceu durante o período de transição para a vida acadêmica, por considerar que a profissão impacta mais diretamente na vida das pessoas. O Direito, uma das suas opções, ficou esquecido.
A cada negro vencedor, que ocupa espaços historicamente negados, se emite uma mensagem que é possível furar a bolha e minar a estrutura que tenta suplantar nossa realeza, ainda que toda estrutura funcione contra nossa progressão social. Essa é a minha lição de vida
Foi a irmã Ísis, que aos gritos anunciou a sua aprovação em Medicina, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), um dos cursos superiores mais concorridos do país. Essa emoção era compreensível: Ícaro Luís Vidal foi o segundo a fazer um curso superior, mas se tornaria o primeiro médico da família.
O ano era 2005, período de implantação da cotas na UFBA. Mesmo tendo sido aprovado na melhor faculdade de Medicina pública, a vida de estudante, foi marcada por travessias de uma vida não luxuosa em relação aos colegas de sala. Os gastos com alimentação e transporte, os custos elevados dos livros e os horários irregulares das aulas em diferentes locais, que exigiam dele, permanência integral na unidade de ensino, se transformam em barreiras para seguir o curso.
A ajuda dos pais e da irmã era suficiente para Ícaro manter as suas despesas básicas, mas para não sobrecarregá-los ele decidiu, então, trancar a faculdade e voltar a trabalhar, após aprovação no concurso público. O médico afirma: “Sempre busquei emprego público porque a lei me garantia o direito de estudar. Tranquei a faculdade para assumir um cargo público que, em sua fase inicial, era incompatível com a carga horária da faculdade”.
Por isso, Vidal reitera algumas informações que já foram publicadas em outras reportagens primeiro negro a se formar pelas cotas na UFBA. Mesmo tendo iniciado o curso com a primeira turma de cotistas da UFBA, ele só conseguiu concluir o curso com a segunda turma de Medicina em 15 de dezembro de 2011, seis anos depois de ter entrado na faculdade. “A pausa na faculdade foi crucial, um tipo de respiro fora do meio acadêmico, era desconfortável, não me sentia parte daquele mundo. A mudança de turma foi reconfortante mais diversificada” diz.
A estrutura está montada para que você desista. O direito à mediocridade não é permitido aos não brancos
A inserção no mercado de trabalho foi através de concurso público na Unidade de Saúde da Família de Salvador (USF), mesmo local onde ele fez a residência em Medicina de Família e Comunidade, e especialização em Preceptoria de Residência Médica no Sistema único de Saúde (SUS). Em 2016 somam-se os plantões no SAMU de Camaçari e as Tutorias e Práticas de Medicina da Família na Universidade de Salvador - UNIFACS.
Além de atuar no serviço público, Ícaro também trabalhou em duas instituições privadas. Ele não sofreu preconceito dos contratantes na rede privada, ao manter a sua identidade de tranças no ambiente de trabalho, mas percebia certa estranheza dos colaboradores, e os clientes que normalmente, preferiam se dirigir a um profissional de pele branca como o médico da equipe.
Já, nos postos de saúde do serviço público, seu visual black, as pessoas lhe aceitaram mais facilmente, por se sentirem representadas, conta: “Eles se identificavam comigo, até porque atuei na comunidade vizinha onde nasci”.
Taxativo ao mencionar que o graduando em medicina não é doutor até que tenha concluído o curso de pós-graduação strictu sensu de doutorado, Ícaro não é adepto às formalidades: “são apenas alcunhas herdadas de um decreto real do Brasil escravocrata. Por isso, gosto de ser reconhecido pelo meu nome. Dentro da área da saúde da família, as formalidades distanciam o paciente do médico”, explica. Durante sua vida acadêmica, Ícaro não se espelhou em nenhum professor: “Os poucos integrantes negros do corpo docente me transmitiam uma ideia de embranquecimento e adequação à norma elitista. A estrutura está montada para que você desista. O direito à mediocridade não é permitido aos não brancos”, explicou
Atualmente, o médico Ícaro Luís Vidal trabalha em situações de emergência no SCS, que equivale ao SUS no Brasil, na cidade de Santa Cruz de Tenerife, nas Ilhas Canarias, Espanha. A partida para o local paradisíaco em 2018 foi motivada por amor, e lá permaneceu para seguir com o mestrado em Investigação, Gestão e Qualidade em Cuidados para Saúde. “Depois de concluir o curso, entrego o futuro à sorte. “Vou chegar a ser doutor, só não sei quando e por qual universidade. A cada negro vencedor, que ocupa espaços historicamente negados, se emite uma mensagem que é possível furar a bolha e minar a estrutura que tenta suplantar nossa realeza, e trabalha contra nossa progressão social”. Essa é a minha lição de vida, finaliza.
Ana Ramos é estudante de jornalismo, Salvador, Bahia.
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