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Artigo

Imprensa Negra

Publicado: 11 Dezembro, 2008 - 00h00

IMPRENSA NEGRA

A imprensa negra no Brasil - momentos iniciais

Ana Flvia Magalhes Pinto

Foi num sbado de 1833, dois anos aps a abdicao de D. Pedro I (o Sete de Abril) e a criao da Guarda Nacional, tambm chamada de milcia cidad. O cenrio era o da intensa agitao em torno dos valores da democracia moderna que marcou o perodo regencial. Vivia-se um momento de reafirmao prematura da cidadania brasileira. O primeiro jornal da imprensa negra no Brasil, o pasquim O Homem de Cr, surge da Tipografia Fluminense de Paula Brito, na capital do Imprio, em 14 de setembro, pondo em xeque as efetivas condies de realizao dessas promessas.

Em seu cabealho, que ser reproduzido nos cinco nmeros do jornal, o que se v uma apresentao esquemtica de um debate que chega aos dias atuais: no lado esquerdo, temos a transcrio do pargrafo 14 do artigo 179 da Constituio de 1824, que diz: Todo o Cidado pode ser admitido aos cargos pblicos civis, polticos e militares, sem outra diferena que no seja a de seus talentos e virtudes; no direito, literalmente, reproduz-se um trecho de um ofcio do Presidente da Provncia de Pernambuco, datado em 12 de junho de 1833: O Povo do Brasil composto de Classes heterogneas, e debalde as Leis intentem mistur-las, ou confundi-las sempre alguma h de procurar, e tender a separar-se das outras, e eis um motivo a mais para a eleio recair nas classes mais numerosas. Ao longo desse texto, estimulado pelo temor de os homens de cor chegarem ao controle de importantes espaos polticos e pblicos, Manuel Zeferino dos Santos prope a diviso da classe dos cidados de acordo com a tonalidade da pele, de modo a essa pautar a distribuio diferenciada e hierarquizada de cargos pblicos. Em outras palavras, o objetivo era a instalao de uma forma mais eficaz de controle do poder, em que, no caso da Guarda Nacional, as altas posies no poderiam ser ocupadas pelos homens de cor, a classe mais numerosa, por isso ameaadora.

Localizado na extensa trama de resistncia ao cotidiano hostil gente de ascendncia africana, esse pasquim nos remete a aes anteriores, bem como abre espao para realizaes seguintes. Transcorreram-se anos at que o tipgrafo negro Francisco de Paula Brito adquirisse o seu maquinrio e O Homem de Cr fosse uma realidade, mas j em 1798 pessoas negras em Salvador, Bahia, organizaram a Revolta dos Bzios, utilizando como veculo aglutinador os manifestos colados em paredes da cidade o que hoje tomamos por jornal mural.

Houve ainda o caso do jornal O Bahiano, do jurista Antonio Pereira Rebouas, que circulou sob sua responsabilidade de 1828 a 1831. Nesse caso, no se trata de um exemplar do que convencionamos classificar de imprensa negra, ou seja, jornais feitos por pessoas negras, direcionado a um pblico tambm negro, guiados pela perspectiva especfica e voltados para a defesa dos interesses desse grupo. No por isso, assim como outros jornalistas/publicistas negros do sculo XIX como Machado de Assis, Luiz Gama, Jos do Patrocnio, Cruz e Souza, entre outros , a atuao de Rebouas digna de realce, na medida em que encerra uma srie de debates e enfrentamentos caros percepo de nossa experincia histrica.

Chegando a 1833, teremos outros ttulos impulsionados pelo aparecimento de O Homem de Cr, o qual a partir do terceiro nmero passou a ser intitulado como O Mulato ou O Homem de Cr. Todos do Rio de Janeiro, Brasileiro Pardo, O Cabrito, O Crioulinho, O Lafuente insistiram em denunciar o corriqueiro preconceito de cor nos espaos pblicos tanto da Corte quanto de outras localidades do pas. Esses atos teriam como pano de fundo as medidas do governo liberal moderado, que assumira a Regncia do Imprio aps a abdicao de D. Pedro I..

Do Rio de Janeiro do perodo regencial, vamos Recife de 1876, capital da Provncia de Pernambuco, tempos do imperador D. Pedro II, onde encontramos o jornal O Homem realidade constitucional ou dissoluo social. Os rasgos de esperana inscritos nos ttulos anteriores aparecem aqui com o sinal da frustrao, sendo, portanto, alvo de crticas. E os governantes so acusados de empurrarem a classe dos homens de cor ao ostracismo, contra toda a justia, contra a prpria lei fundamental de pas. Em outras palavras, passados 43 anos, o mote das denncias e reivindicaes basicamente o mesmo.
Pouco depois ser a vez de So Paulo, com A Ptria orgam dos homens de cr (1889) e O Progresso orgam dos homens de cr (1899), bem como Porto Alegre, com O Exemplo (1892). Esse, de vida longa, rompeu as fronteiras do sculo XIX e findou-se somente em 1930, em decorrncia da quebra da bolsa de Nova York. Finda a escravido e proclamada a Repblica, a acidez dos discursos tampouco diminui. Em vez disso, intensifica-se, como exibido no primeiro nmero de O Progresso:

Proclamou-se a Repblica, o governo da igualdade, da fraternidade e queijamas (sic) liberdades. No movimento republicano, contavam-se muitos pretos e mulatos (que vm a dar no mesmo) que prestavam e prestam servios inolvidveis ao novo regime.

Espervamos ns, os negros, que, finalmente, ia desaparecer para sempre de nossa ptria o estpido preconceito e que os brancos, empunhando a bandeira da igualdade e fraternidade, entrassem em franco convvio com os pretos, excluindo apenas os de mau comportamento, o que seria justssimo.

Qual no foi, porm, a nossa decepo ao vermos que o idiota preconceito em vez de diminuir cresce; que os filhos dos pretos, que antigamente eram recebidos nas escolas pblicas, so hoje recusados nos grupos escolares; e que os soldados pretos que nos campos de batalha tm dado provas de herosmo, so postos, oficialmente, abaixo do nvel de seus camaradas; que para os sales e reunies de certa importncia, muito de propsito no convidado um s negro, por maiores que sejam seus merecimentos; que os poderes pblicos em vez de curar do adiantamento dos pretos, atira-os margem, como coisa imprestvel?

Os momentos iniciais da imprensa negra no Brasil so mais uma prova de que, a despeito de inmeros contratempos entre os quais o prprio escravismo e seus instrumentos afins , os afro-brasileiros conseguiram formular uma fala prpria e torn-la pblica. Ainda que no tenham alcanado simultaneamente todo o territrio nacional, esses impressos so parte do esforo coletivo de controlar os cdigos da dominao e subvert-los. Nas palavras de Frantz Fanon, falar poder usar certa sintaxe, possuir a morfologia de uma ou outra lngua, mas , sobretudo, assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilizao. Outrossim, vivida a disperso promovida pela escravido moderna, as trajetrias assumidas pelas populaes negro-africanas no territrio da dispora esto repletas de investidas semelhantes, as quais sero abordadas em outros momentos. Por ora, identificamos um marco ao qual se conecta o empenho de vrios jornais negros contemporneos, entre os quais o nosso rohn, a notcia em ioruba!