Escrito por: Secretaria de Combate ao Racismo

A última abolição das Américas explica muita coisa

13 de Maio no Brasil. A última abolição das Américas explica muita coisa e dispensa comemorações.

GOV/CE
É preciso uma segunda abolição

Pensem nas figuras de bisavôs e bisavós, nossas pessoas queridas de idade avançada, naqueles poucos anciãos que ainda vivem entre nós dentre as pessoas nascidas nas décadas iniciais dos anos de 1900 do século XX. Agora pensem na data da abolição brasileira, 1888, apenas doze anos antes do início do século XX. Pensaram? Percebem como o espaço que nos separa desse acontecimento marcante é pequeno? Sendo ele assim pequeno, é pequena toda a tentativa de afirmar que os negros no Brasil não fazem jus à reparação histórica por terem sido a última população afrodescendente da América a ser liberta do cativeiro, da exploração branca, e de todas as crueldades e consequências sociais herdadas da escravidão.

Sessenta anos antes de 1888, o Chile já havia abolido o tráfico marítimo de negros escravizados, e assim lhes seguiram vários países da região e da Europa. Dez anos depois, não por motivos nobres referentes à liberdade de seres humanos, mas pela necessidade de capital consumidor, é a vez do império Britânico abolir a escravidão e exigir que os demais países do mundo sigam o seu exemplo. Porém, o Brasil não o segue, pelo contrário, se mantém importando cada vez mais africanos, trazendo navios superlotados daquele continente. Na medida em que as leis abolicionistas eram criadas, como a famigerada Eusébio de Queirós e a lei do Ventre Livre; ao lado das pressões inglesas pelos mares do mundo, o comércio escravagista brasileiro se lançava em uma perigosa corrida pelo oceano atlântico, contrabandeando vários povos da Costa Ocidental africana para que continuassem sendo vendidos às fazendas brasileiras por preços cada vez maiores. Era literalmente a inflação do mercado sobre os corpos negros.                                                  Nos doze anos seguintes à publicação da definitiva Lei Áurea pela então princesa Isabel, em 1888, ainda há casos domésticos de tráfico de escravos entre grandes fazendas brasileiras. Mas isso não é tudo, após a abolição, os ex-senhores de escravos se sentiam lesados, assim, muitos deles foram indenizados pelo império brasileiro que, um ano depois viria a ser República. Os ares republicanos, entretanto, não trouxeram consigo uma política  de inclusão para o povo negro recém liberto, pelo contrário, a república brasileira resolveu importar italianos e japoneses para trabalhar em nossas lavouras em uma tentativa triste de deixar o país com uma população mais branca. Desde então, as formas de exclusão dos negros na história brasileira vêm se adaptando às necessidades das elites de cada tempo, mas nunca terminam, tanto é que, década após década, estamos em 2020 e, não é necessário olhar para o tempo de nossas bisavós para ver o preço que pagamos socialmente pela abolição tardia e por tudo que lhe sucedeu, basta olharmos para as ruas que lá está o retrato da desigualdade racial do Brasil.

Falar das aspirações da Constituição de 1988 para a população negra ainda é dizer pouco. Falar das cotas raciais constitui nada menos que uma obrigação, que por sua vez  precisa de melhorias e expansão. E nem assim os efeitos socioeconômicos de uma política pública que tenta reparar uma pequena parte das consequências da exclusão social ocasionadas por mais 300 anos de escravidão e do posterior abandono da população ex-escravizada superaram a nossa gritante desigualdade racial. É preciso bem mais que a comemoração de uma data que, como vimos, chega tarde e com má vontade no salão das nações do mundo, para que o povo negro brasileiro possa de fato comemorar a libertação na sua história

 Não se pergunta a qualquer grupo social que tenha sofrido com as desgraças da 2ª guerra mundial, por exemplo, o que pode ser feito para lhes reparar o sofrimento, pois sabe-se que isso é irreparável. Assim, toda reparação é apenas executada sem a discussão de seu mérito. Mas no Brasil, muitos ainda se sentem no lugar de dizer ao negro o que é seu direito e o que não é, em atos de racismo que mal percebem, continuam carregando as marcas da personalidade brasileira que rondava os ares imperiais de 1888.

Por essas e muitas outras não se comemora essa data, afinal, ela mostra ao Brasil exatamente do que ele deve se envergonhar como país.

         

Gilene Pinheiro
Secretária de Combate ao Racismo - CUT Bahia